“AI-5 foi aprofundamento das bases legais da ditadura, não golpe dentro do golpe”

*No aniversário de 55 anos do golpe militar que derrubou o presidente João Goulart, na madrugada do dia 1º de abril de 1964, a ConJur republica entrevista com o professor Danilo Pereira Lima. Autor do livro Liberdade e Autoritarismo: o papel dos juristas na consolidação da ditadura militar de 1964, ele conta como operadores do Direito foram importantes para que os militares se mantivessem no poder durante 21 anos e ainda conseguissem articular a devolução do governo aos civis. Para ver a publicação original, do dia 23 de dezembro de 2018, clique aqui.

Mais de 50 anos depois, o golpe militar de 1964 ainda causa controvérsia em alguns círculos. Não é incomum que algum lado acuse os outros de golpistas ou de ter sido conivente com um movimento autoritário, que tinha o extermínio de dissidentes como uma política.

Com os juristas, no entanto, a discussão é um pouco mais complexa. O golpe foi dado para derrubar o presidente João Goulart e evitar a “ameaça comunista” e para isso precisou instalar um regime de exceção. Precisou, portanto de especialistas em Direito para criar uma “engenharia constitucional autoritária”, afirma o professor Danilo Pereira Lima.

Essa engenharia, ele conta, foram os atos institucionais e as emendas constitucionais criadas pelo governo para manter o controle sobre o Legislativo. Foi o caso do primeiro Ato Institucional, que trouxe a célebre frase de que a revolução se legitima por si própria, redigido pelo advogado Carlos Medeiros Filho em parceria com Francisco Campos, o jurista de primeira hora para governos autoritários da época.

“O apoio da comunidade jurídica foi significativo”, diz Pereira Lima, em entrevista exclusiva à ConJur. Ele acaba de lançar o livro Liberdade e Autoritarismo: o papel dos juristas na consolidação da ditadura militar de 1964. A obra, resultado da tese de doutorado de Pereira Lima, pretende analisar qual foi a contribuição da comunidade jurídica para a sustentação da ditadura, um regime que começou de um golpe com apoio popular e foi se fechando cada vez mais até transformar a tortura e o assassinato de dissidentes em política de Estado.

A tese foi orientada pelo professor Lenio Streck, um grande crítico do que chama de instrumentalização do Direito pelos juristas. E a reclamação encontra ecos no livro de Pereira Lima. Segundo ele, aquela época foi marcada por uma cultura jurídica autoritária, que via o Direito de maneira ligada às questões políticas da Guerra Fria. Por isso, não havia barreiras ao uso de instrumentos legais para perseguição de dissidentes.

“Não quis fazer uma caça às bruxas”, afirma Pereira Lima. “No Direito, falta interesse pela história. Não existe a autocrítica de dizer ‘qual foi o papel da comunidade jurídica nesse período? De que maneira contribuímos? E de que maneira contribuímos para a resistência?’”

Leia a entrevista:

ConJur — Qual foi o papel dos juristas na sustentação da ditadura militar?
Danilo Pereira Lima —
 Faltava uma analise mais aprofundada sobre o papel do Direito na estabilização do regime militar. Quando ele aparecia, era como se fosse um detalhe menor. E na pesquisa percebi que a criação de instrumentos legais como os atos institucionais, a Lei de Segurança Nacional e toda a legislação de exceção foi fundamental para que o regime conseguisse se organizar e conquistasse uma estabilidade jurídica de 21 anos.

O Direito tinha um papel duplo. Ao mesmo tempo que os militares o usavam para dar um verniz de Estado de Direito (manteve o Supremo Tribunal Federal e o Congresso funcionando), também foi por meio do Direito que o regime conseguiu construir essa engenharia constitucional autoritária. E isso foi extremamente importante.

ConJur — Uma das conclusões do livro é que havia uma cultura jurídica autoritária que permitiu o golpe e a ditadura. O que foi essa cultura autoritária?
Danilo Pereira Lima —
 Um aspecto interessante da tese que não cheguei a trabalhar, mas que pretendo me aprofundar, foi a aproximação entre os juristas do Estado Novo, defensores de um Estado forte, tutor dos rumos da sociedade, e os juristas da UDN, de tradição liberal, bastante críticos às experiências totalitárias do país. E aí o principal nome era o Francisco Campos. Ele foi para o Brasil o que o Carl Schmidt foi para a Alemanha. Campos era um crítico da democracia liberal, defendia uma maior concentração de poderes no Executivo, redigiu a Constituição de 1937 e depois de 64 ele foi muito importante na redação do primeiro ato institucional, junto com o Carlos Medeiros da Silva.

ConJur — E por que houve essa aproximação?
Danilo Pereira Lima —
 Em 64, esses dois grupos decidiram apoiar o golpe e o regime, devido à resistência às Reformas de Base, e o anticomunismo era muito usado para isso. Então esses juristas liberais se aproximaram dos juristas do Estado Novo para apresentar uma concepção instrumental do Direito. Teve até uma declaração do Pontes de Miranda para um jornal às vésperas do golpe em que ele disse que a Constituição precisava ser violentada para ser preservada. Isso demonstra o caráter instrumental do Direito, que é uma coisa que o Lenio ataca muito hoje, de não levar a sério as regras do jogo democrático e romper com a Constituição quando parece conveniente para o meu grupo político. E isso era muito presente no período de 1946 a 64, que foi democrático, mas não muito.

ConJur — O livro cita muitos juristas famosos como figuras de suporte à ditadura. Francisco Campos, Gama e Silva, Moreira Alves, Leitão de Abreu, Aliomar Baleeiro, Manuel Gonçalves Ferreira Filho, enfim. Mas esses são os grandes nomes da época, eram os juristas consultados por governos, faziam parte da vida política do país. Esse movimento de apoio à ditadura foi generalizado, ou foi uma coisa mais elitizada?
Danilo Pereira Lima —
 O apoio foi significativo. Se analisarmos a composição do ministério durante os governos de exceção, quem mais contribuiu foram os cursos de Direito, a maior parte dos ministros tinha formação jurídica. Agora, era o contexto da Guerra Fria e existia essa análise muito mais política e ideológica do Direito. No caso do Manuel Ferreira Filho, por exemplo, encontrei vários textos dele defendendo claramente a flexibilização dos direitos fundamentais para facilitar a repressão. E o baixo clero do Direito acaba acompanhando essas posições.

Claro que isso não era uma posição única. No último capítulo destaco a atuação de diversos advogados no sentido de organizar uma resistência democrática ao regime. Como as garantias estavam fragilizadas, o advogado ficava numa situação complicada, não conseguia fazer uma defesa meramente jurídica. Só que, como o regime tinha a necessidade de manter as aparências de Estado de Direito, o advogado se esforçava ao máximo pra dar publicidade à prisão de seu cliente e denunciar isso à opinião pública. E isso ajudou a salvar muitas vidas. Houve alguns casos em que essa ação de advogados evitou o mal maior do assassinato e do desaparecimento. O preso político chegava a ser torturado, mas graças à atuação do advogado de dar publicidade ao caso, o governo não pode mais dizer que ele está desaparecido.

Houve também os casos dos indiferentes, os advogados que achavam que o Brasil passava por um momento de normalidade. E houve o caso do Sobral Pinto, católico conservador, apoiou o golpe, mas na semana seguinte ele já estava batendo de frente com os militares.

ConJur — Agora, os juristas tinham escolha? Era um regime de violência.
Danilo Pereira Lima —
 Meu trabalho não pretende fazer discurso de caça às bruxas. Minha intenção é tentar analisar de maneira crítica o papel que os juristas tiveram naquela época para conscientizá-los que eles precisam assumir responsabilidades de preservar o Estado de Direito e os direitos fundamentais. Hoje defender direitos e garantias está ficando complicado. O sujeito que faz isso é rapidamente tachado de favorável à corrupção. Revisitar essa passagem da nossa história é importante para fortalecer o compromisso dos juristas com a democracia.

ConJur— O que quero dizer é: os juristas foram ao governo oferecer seus préstimos ou foram convocados pelos militares para ajudar?
Danilo Pereira Lima
  O movimento de 64 teve um respaldo social enorme, e isso não foi exclusivo dos juristas. Igreja, empresários, jornalistas, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade foi um movimento de massa. O anticomunismo sempre foi muito forte no Brasil pelo menos desde 1935, quando teve o levante comunista contra a ditadura Vargas. E quando eu falo de juristas, me refiro aos grandes nomes, Manoel Ferreira Filho, Miguel Reale, Hely Lopes Meirelles — foi secretário de Segurança em São Paulo e ajudou a organizar a Oban. Esse pessoal acompanhou de perto as movimentações dos militares e acompanhou essa ampla mobilização popular por entender que, naquele momento, a intervenção dos militares era necessária.

ConJur — E mesmo depois do AI-5?
Danilo Pereira Lima —
 Ao longo da ditadura foram surgindo diversas disputas internas. Existia um entendimento interno entre os apoiadores em relação a 64, mas depois começaram os rachas. No AI-5 já apareceu uma ruptura importante: Pedro Aleixo, vice-presidente, jurista que vinha dessa tradição de criticar o Estado Novo, percebeu que a coisa estava indo longe demais e resolveu criticar o regime militar. Isso custou caro pra ele, que foi impedido de assumir quando Costa e Silva se afastou.

O jurista Afonso Arinos também era ligado à mesma tradição que Pedro Aleixo e começou a sentir que o regime estava se fechando demais e decidiu se afastar. Não fez oposição aberta, mas parou de apoiar.

ConJur — O livro cita muitos nomes de tradição liberal, mas eles na verdade defendiam valores conservadores para os padrões de hoje, não?
Danilo Pereira Lima —
 O liberalismo brasileiro que teve mais força política tem uma postura muito elitista. Se formos à época do Império, os liberais eram ligados à escravidão e a uma concepção em que a sociedade sempre aparece fragilizada e o Estado, organizador tomando as rédeas. E existe sempre um receio da participação popular no processo político. Tanto é que um dos motivos pro golpe de 64 foi uma proposta de emenda constitucional que ampliava o direito de voto para os analfabetos. Mas é claro que há graus diferentes de autoritarismo. Francisco Campos e Pedro Aleixo e Afonso Arinos concordaram no golpe, mas têm posições jurídicas e políticas bem diferentes.

ConJur — Entre os advogados, a impressão que se tem é que a resistência à ditadura sempre foi feita por criminalistas. Como as outras áreas do Direito se comportaram?
Danilo Pereira Lima —
 É um ponto que chama atenção: o país vivia uma situação autoritária e não encontrei ninguém nenhum constitucionalista famoso que fizesse uma crítica ao regime. Pontes de Miranda, nos comentários que fez às constituições de 67 e 69, chegou a dar algumas declarações críticas ao regime. Mas foi o único caso. Claro que hoje é muito mais fácil criticar abertamente a ditadura, não quero ser injusto com os autores. Mas o que encontrei foi apoio entusiasmado entre os constitucionalistas

ConJur — E o Judiciário?
Danilo Pereira Lima —
 Foram pouquíssimas cassações. O Supremo apresentou alguma resistência quando a composição foi alterada e três ministros foram aposentados compulsoriamente, mas as demais instâncias não viram cassações. Pesquisei as notas taquigráficas das reuniões para a formulação da Constituição de 69, e num dado momento os participantes focam no Judiciário. O Gama e Filho, então, fala que é melhor não mexer em nada que possa interferir no bolso deles, porque poderia haver uma resistência. Então as demandas da magistratura e das entidades eram corporativas. Não existia nada no sentido de fazer um apontamento crítico à questão autoritária, aos riscos de aprofundamento do autoritarismo, nada. No Judiciário são raros os casos de resistência.

ConJur — O relatório da Comissão Nacional da Verdade descreve o Supremo como “errático” até a edição do AI-5, mas a partir de 69 tornou-se um tribunal dócil. O seu trabalho chegou à mesma conclusão?
Danilo Pereira Lima
 — Em 64, o presidente, ministro Ribeiro da Costa, apoiou o golpe. Os demais ficaram em silêncio. Essas tensões com as Forças Armadas eram muito comuns, e vários dos ministros achavam que aquilo era uma crise, mas logo haveria uma conciliação e tudo voltaria ao normal. E mesmo os que apoiaram, não imaginaram que o golpe se tornaria numa ditadura de 21 anos. Então o presidente do Supremo apoiou, participou da sessão que deu posse ao presidente da Câmara, Ranieri Mazzili, enquanto João Goulart ainda estava em território nacional, no Rio Grande do Sul. E quando Castelo Branco assumiu ele o recebeu e manteve relações respeitosas. As tensões só cresceram quando ficou claro que a intenção do regime era interferir em questões internas do tribunal. E aí os setores mais autoritários começaram a cobrar a cassação dos ministros indicados por JK e Jango, Evandro Lins e Silva, Victor Nunes Leal e Hermes Lima. Nesse momento de tensão o Supremo chegou a tomar algumas decisões que desagradaram o governo, como a concessão de alguns Habeas Corpus, como no caso de Miguel Arraes. Isso provocou uma crise dentro do governo.

ConJur — O Supremo chegou a bater de frente com o regime?
Danilo Pereira Lima —
 Em alguns momentos. Durante os governos Castelo Branco e Costa e Silva, por meio da concessão de alguns HCs, e o presidente do Supremo começou a se sentir ameaçado e que a autonomia funcional do Supremo estava em risco, foi o momento de maior choque entre poderes. Mas depois, com a cassação dos três ministros, o regime passou a ter um controle maior.

Talvez o único problema que eles tiveram foi o episódio de Adaucto Cardoso. Ele foi deputado pela UDN e apoiou o golpe, mas começou a criar dificuldades diante da vontade de cassar deputados. Quando ele estava no Supremo, teve uma divergência num caso de censura e simplesmente tirou a toga e nunca mais voltou, nem para o STF e nem para a vida pública.

ConJur — Outra conclusão interessante do livro é que o AI-5 não foi um “golpe dentro do golpe” como se costuma se dizer, mas um “aprofundamento das bases legais do regime”. Em que sentido?
Danilo Pereira Lima —
 A novidade do AI-5 foi a radicalização das bases autoritárias. Mas desde o AI-1, desde o começo, já houve cassações, lideranças sindicais foram presas, já houve denúncias de tortura. O AI-5 aprofundou isso, ampliou a possibilidade do regime de controlar os segmentos que tentassem questionar a estrutura autoritária do regime. Então foi uma situação de continuidade, não foi um ponto fora da curva. Ele acompanhou o que o regime começou a fazer desde o primeiro dia da cassação de João Goulart.

ConJur — Delfim Netto, que foi um dos signatários do AI-5, já disse algumas vezes que não sabia que aquilo tudo ia acontecer, e recentemente disse que, com aquelas informações, teria assinado de novo. Isso é controverso, então?
Danilo Pinheiro Lima —
 Sim, tudo aquilo já acontecia antes. E tem outra coisa: quando um setor político flerta com uma medida autoritária, mesmo que não deseje tudo aquilo, ele abre as portas do inferno. E quando começa a guerra, é difícil colocar as coisas no lugar. Ter rompido com a Constituição de 46, ter destituído um presidente da República, isso é abrir as portas do inferno. E é importante também a questão da memória.

ConJur — Que questão?
Danilo Pereira Lima —
 Depois que terminou a ditadura, a memória liberal, do empresariado foi que fizemos isso porque o comunismo representava uma ameaça, a tortura aconteceu, mas não temos responsabilidade, foi culpa dos órgãos de repressão, que exageraram na dose. Mas a historiografia tem desmentido isso, como no caso do Geisel, dos documentos que agora surgiram.

ConJur — O que os documentos negam?
Danilo Pereira Lima —
 A versão mais aceita para Geisel é a de que ele era um moderado que estava planejamento a abertura. Mas esses documentos mostram que ele tinha conhecimento do que acontecia, dos desaparecimentos e dos assassinatos, e isso era uma decisão tomada dentro do Poder Executivo. A transição que o Geisel queria era uma transição controlada, e ele achava que não poderia fazer isso sem eliminar os comunistas, e foi o que ele fez.

O caso do Partidão, do PCB, é emblemático. O PCB não optou pela luta armada, sempre teve uma postura reformista, de apoio às Reformas de Base. Quando aconteceu o golpe, houve várias dissidências que foram para a luta armada, mas o PCB continuou tentando articular uma resistência civil e, num primeiro momento, com exceção de Gregório Bezerra, nenhum grande líder do Partidão foi preso. E depois que a luta armada já tinha sido dizimada, a Guerrilha do Araguaia, vencida, o regime se voltou contra os dirigentes do PCB. E aí vários foram trucidados, e isso passava pelo Executivo. Eles passaram o trator nessa época, tudo sob ordens do presidente da República.

ConJur — E a OAB? A Ordem apoiou não só o golpe como também a ditadura mesmo, durante mais de dez anos. A pesquisa chegou a investigar os motivos disso?
Danilo Pereira Lima —
 Teve a questão corporativa. Havia a informação de que Jango estava se aproximando do Sindicato dos Advogados e a OAB receava perder representatividade junto à classe. Mas a oposição da OAB ao Jango seguiu a mesma lógica dos juristas, jornalistas, do clero etc. Eles achavam que o governo João Goulart era uma ameaça pra concepção de democracia liberal que eles tinham, e achavam que as Reformas de Base seriam um primeiro passo para o Brasil passar por uma revolução comunista como foi a Revolução Cubana. A OAB seguiu essa linha, boa parte de seus presidentes para um ministério. A cúpula da Ordem exerceu cargos importantes durante a ditadura.

A posição da Ordem só mudou em 1975, 1976, com a atuação muito relevante de Raymundo Faoro e de Seabra Fagundes. Mas a OAB só entrou na oposição mesmo quando ganhou força a tese da resistência civil democrática. Mas de 64 até a primeira metade dos anos dos anos 70 a OAB defendeu o regime sem dar muita importância às denúncias de tortura e assassinato. Os advogados que iam lá fazer essas denúncias eram excluídos.

Fonte: Pedro Canário / Conjur