Fim da contribuição sindical é Cavalo de Troia para trabalhadores

Por Valdete Souto Severo

A Lei 13.467/2017, conhecida “reforma trabalhista”, promoveu, dentre tantos desmanches, ataque visceral e perverso à organização coletiva das trabalhadoras e dos trabalhadores. A perversão está no argumento da valorização da autonomia coletiva da vontade, como se houvesse autonomia coletiva da vontade em uma lógica de desemprego estrutural e de ausência completa de garantias efetivas contra a perda do trabalho[1].

Basta. uma singela análise das normas coletivas fixadas para as principais categorias profissionais do país nos últimos anos, antes mesmo da “reforma”, para percebermos que pouco há de “negociação” efetiva. No mais das vezes, as normas apenas repetem texto de lei e garantem reposição salarial, quando não servem de instrumento para a renúncia a direitos fundamentais.

O que aqui importa ressaltar é que a Lei 13.467 não apenas deixa de corrigir problemas efetivamente existentes na CLT, que mantêm o sindicato atrelado ao Estado apesar da ordem constitucional vigente desde 1988, como também cria novos e graves entraves à atuação coletiva da classe trabalhadora.

Por mais que se tente minimizar, o prejuízo que decorre da reforma trabalhista é gigantesco e ainda está sendo contabilizado.

É claro que a forma assustadoramente veloz e tranquila, da perspectiva da resistência que lhe poderia ter sido oposta, com que a “reforma” foi aprovada, acabou impondo aos sindicatos o repensar da forma como a mobilização, e sobretudo a identidade de classe, vinha sendo construída e vivenciada. Um repensar necessário e urgente. Mas também é verdade que o ataque foi tão perversamente completo, que reagir ao desmanche será tarefa árdua.

E não se trata apenas do reconhecimento da falsidade da premissa do “negociado sobre o legislado”, fórmula retórica através da qual uma lei estabelece o que e como os direitos trabalhistas devem ser “negociados”, sempre, é claro, sob a perspectiva da redução e da supressão do mínimo constitucionalmente assegurado, invertendo completamente a lógica que alça as convenções e acordos coletivos a direito fundamental da classe trabalhadora.

Esse é sem dúvida um ponto importante, pois ao colocar os sindicatos na posição de “negociadores” capazes de suprimir direitos (artigo 611A da CLT), a lei subverte a razão histórica pela qual existem normas coletivas: a melhoria do patamar mínimo de direitos garantido por lei.

E esse é apenas um dos tantos pontos em que a “reforma” passa uma rasteira na luta sindical, buscando claramente aniquilar a força coletiva da classe trabalhadora.

Existem muitos outros pontos a serem considerados. A Lei 13.467/2017 acaba com a necessidade de assistência do Sindicato, no momento do recebimento das verbas resilitórias, ao final de um vínculo de emprego. Com isso, afasta o trabalhador do momento em que ele teria um necessário encontro com seus representantes e a revisão de fatos que poderiam evidenciar lesões sofridas durante o contrato e por ele sequer percebidas como tais.

A Lei 13.467/2017 também altera dispositivos da Lei 13.429/2017 para supostamente permitir que todas as atividades de uma empresa sejam terceirizadas. O comando não resiste ao conceito de empregador do artigo segundo da CLT e afronta o direito fundamental à relação de emprego, do inciso I do artigo sétimo da Constituição. Ainda assim, foi respaldado em recente decisão proferida pelo STF na ADPF 324[2]. Aliás, tem sido uma constante, nas análise que o STF faz de matérias trabalhistas nos últimos tempos, colocar o lucro do capital acima da preservação da saúde e da vida de quem vive do trabalho[3].

A repercussão de uma tal decisão no mundo dos fatos só não é mais devastadora porque a realidade da terceirização sem qualquer limite a precedeu. A distinção entre atividade-meio e atividade-fim e a exoneração da responsabilidade das tomadoras, deixando os trabalhadores ao completo desamparo, é algo que já vinha sendo praticado e chancelado por decisões anteriores, tanto do TST quanto do STF[4].

A terceirização pulveriza a classe trabalhadora, coloca as pessoas em condições jurídicas e fáticas diversas.

Em um mesmo ambiente de trabalho, o terceirizado tem uniforme, salário, chefe imediato e muitas vezes refeitório e portaria diferentes. O efeito concreto é a dificuldade em se identificar como classe, em perceber que estão todos no mesmo barco. Se os bancários lutam por melhores salários, os terceirizados que atuam dentro da instituição dificilmente se agregarão a essa luta. Eis aí uma das razões pelas quais é urgente repensar a noção de categoria profissional[5], por exemplo.

]E tem mais. A Lei 13.467/2017 permite “negociação” direta entre empregado e empregador (sempre para reduzir ou suprimir direitos, evidentemente), em situações que antes exigiam a presença do sindicato. E nas hipóteses de “negociação” coletiva, pretende que o sindicato seja chamado em todas as demandas trabalhistas que envolverem direitos aí previstos, regra que, uma vez aplicada, faria dele um centro burocrático de atuação judicial, em demandas por ele não provocadas e contra ele não dirigidas.

Também prevê a possibilidade de acordo “extrajudicial” que deve ser judicializado para a obtenção da cláusula abusiva e ilegal de “quitação de contrato”, algo que na prática significa (à revelia do ordenamento jurídico) a impossibilidade de acesso à justiça e, pois, o esvaziamento da função preventiva, punitiva e ressarcitória em que o Sindicato pode atuar como agente decisivo na reposição ou no impedimento do dano, mediante manejo de ações coletivas.

A “reforma” busca, embora não deva alcançar seu objetivo em razão de sua atecnia, impedir proteção à dispensa coletiva, quando a equipara às despedidas individuais, atingindo, também aí, importante âmbito de atuação sindical.

A contribuição sindical obrigatória: o ataque ao direito dos trabalhadores 

Existem ainda outros exemplos, mas o principal deles, que diz respeito com a medida provisória recentemente publicada pelo governo, é que a “reforma” suprime a contribuição sindical obrigatória. Isso, por si só, não seria um drama, se a lei tivesse também revogado os artigos da CLT que atrelam o sindicato ao Estado e que estabelecem unicidade em afronta à convenção fundamental 87 da OIT ou tivesse disciplinado o inciso I do artigo sétimo da Constituição acerca da proteção contra a despedida. É bom que se diga que algumas categorias inclusive já devolviam, sistematicamente, essa contribuição.

O problema é que da forma como aprovada, a supressão da contribuição deixou os sindicatos, construídos ao longo do tempo  – por imposição do sistema – como um centro de recreação, assistência e luta em defesa dos trabalhadores, completamente impossibilitados de dar conta de manter sua estrutura e funcionamento[6].

Daí porque esses sindicatos passaram a buscar alternativas que permitissem seguir existindo e lutando contra o desmanche, que se aprofunda dia a dia, com a proposta de alteração nas regras previdenciárias, a fim de instituir um regime de capitalização que empobrecerá e provocará a indigência de nossos idosos, por exemplo. Uma dessas alternativas, que já obteve chancela judicial, é a instituição de contribuição por estatuto ou assembleia, e de cobrá-las inclusive de não filiados.

É verdade que o Poder Judiciário já vinha adotando posição contrária à cobrança de contribuições de não sindicalizados[7] e vem chancelando as alterações da “reforma”[8], ainda assim, várias decisões judiciais têm reconhecido essas possibilidades.

É por isso que no dia 01 de março, uma vez mais desrespeitando a autonomia da vontade coletiva, que os autores da “reforma” exortam mas ignoram solenemente, o governo editou a Medida Provisória 873, que altera artigos recentemente alterados na CLT, pela “reforma trabalhista”. A novidade é a exigência de “prévia, voluntária, individual” e expressa autorização pelo empregado (art. 578)[9] que “participar de determinada categoria econômica ou profissional ou de profissão liberal” (art. 579), para o desconto; a instituição de nulidade de “regra ou a cláusula normativa que fixar a compulsoriedade ou a obrigatoriedade de recolhimento” (§ 2º); a determinação de que tais contribuições devam ser exigidas “somente dos filiados ao sindicato” (Art. 579-A), sejam elas “mensalidade sindical” ou “demais contribuições sindicais, incluídas aquelas instituídas pelo estatuto do sindicato ou por negociação coletiva”. A medida provisória ainda exige o recolhimento das contribuições “exclusivamente por meio de boleto bancário ou equivalente eletrônico” (art. 582).

O primeiro aspecto a ser ressaltado é que medida provisória é ato excepcional do Poder Executivo, para regular matérias que tenham urgência e relevância[10]. Evidentemente, não é esse o caso. Mas de nada adianta bater nesta tecla, afinal já temos quase 900 medidas provisórias e poucas delas realmente consideram o parâmetro constitucional.

Esse vício de forma, entretanto, não é o que há de pior. A intromissão do Poder Executivo na atividade regulatória que pertence (ou deveria pertencer) ao Legislativo, se ainda vivêssemos sob a lógica de um Estado de Direito Constitucional, é a prova cabal da falsidade da retórica da “reforma”, de que há uma valorização das entidades sindicais e de sua suposta autonomia de vontade. A MP desautoriza os sindicatos a estabelecerem livremente a forma e o modo como arrecadarão fundos que lhe permitam atuar em defesa da classe trabalhadora.

Ora, o artigo 8o da Constituição dispõe que a “assembleia geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva, independentemente da contribuição prevista em lei” (IV).  A nova redação do art. 582 da CLT desafia, portanto, regra constitucional expressa.

Aliás, toda a alteração perpetrada, não apenas pela MP ora editada, mas pela Lei 13.467, é contrária à ordem constitucional, quando estabelece que é “livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte”: (Art. 8º) “I – a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical”.

Sequer a parte da CLT que regula a forma como as categorias se organizam e o sindicato sobrevive poderia haver sido considerada recepcionada após a Constituição de 1988. Mas não apenas seguiu-se aplicando regras que interferem na organização sindical, como agora – na contramão das diretrizes constitucional e internacional sobre o tema[11] – chega-se ao cúmulo de determinar até mesmo a forma como tais contribuições deverão ser recolhidas.

Não se trata de novidade. A possibilidade de atuação sindical crítica e comprometida já vem sendo afetada por legislações anteriores e por decisões administrativas e judiciais que criminalizam e impedem concretamente o exercício do direito de greve[12]. E os participantes do atual governo foram muito honestos durante a campanha eleitoral. Estava clara a posição acerca dos direitos sociais e seus mecanismos de efetividade.

O problema, portanto, não é a edição da MP e sua (in)compatibilidade com a ordem jurídica constitucional ou internacional. O problema não é jurídico. Se fosse, não veríamos medidas provisórias serem editadas como se não houvesse um Poder Legislativo a ser respeitado; não teríamos decisões judiciais afirmando que é possível corte de ponto de trabalhadores, cuja greve está em conformidade com a legislação vigente, nem teríamos uma lei empresarial aprovada em tempo recorde e inserida dentro da CLT.

A questão é política. A asfixia dos sindicatos ocorrerá, se não houver reação. E a reação não pode ser apenas no campo da regulação estatal.

Noticia veiculada na Folha de São Paulo, dia 04 de março, informa que “as centrais sindicais preparam uma reação” à MP, pois pretendem “resgatar um projeto que regulariza a chamada contribuição negocial. De acordo com a proposta, os sindicatos teriam autonomia para cobrar a taxa de todos os trabalhadores, após aprovação de assembleias de cada categoria”. A notícia dá conta, ainda, de que os representantes dos sindicatos no Congresso irão propor a criação do Conselho Nacional de Autorregulação Sindical[13].

Eis a prova do longo caminho que ainda temos a percorrer. Se a notícia confere, o que podemos perceber é que mesmo as entidades sindicais ainda têm dificuldade em exercer liberdade, pois buscam respostas estatais para problemas que não decorrem da ausência ou da quantidade de regulação sobre o tema.

É urgente compreender que sindicatos constituem a reunião coletiva de pessoas que se identificam, porque trabalham em um mesmo ambiente e, portanto, vivenciam a mesma situação; porque reconhecem sua identidade comum; porque sua luta é a mesma.

A regulação estatal – é essa a sua função – agirá sempre para manter tais organizações coletivas sob controle. Em tempos de exceção essa regulação apenas se torna ainda mais asfixiante. Não podemos esquecer que sindicatos existem para permitir que os trabalhadores tenham força suficiente para impor melhores condições de trabalho ou se insurgir coletivamente contra determinado estado de coisas e isso, em uma sociedade fundada na propriedade privada, na reprodução de miséria social e na acumulação, é sempre um grave risco ao que astuciosamente se denomina “paz social”.

Não se trata de ignorar o ordenamento jurídico, mas de perceber sua verdadeira função em uma sociedade como a nossa. E, no campo da regulação estatal, pautar a atuação em parâmetros comprometidos com a evolução da questão social. Em nosso caso, esse parâmetro está na Constituição da República. É preciso, porém, ir além.

Diante de uma atitude agressiva como essa abertamente assumida pelo Estado é preciso reagir, reconhecendo a necessidade de realização de greve política; rediscutindo, com seriedade, os conceitos de greve, categoria profissional e sindicato.

Os sindicatos precisam resgatar uma identidade que independa de prescrições legais. Por consequência, precisam construir com urgência fórmulas de sobrevivência que não estejam a disposição de governos reacionários ou fascistas. Sua existência deve ser viabilizada pelo reconhecimento de sua importância na construção de uma sociedade menos desigual. Os movimentos sociais são bons exemplos com os quais é possível aprender, e avançar.

Fonte: Carta Capital